O Decreto 11.373/23 e as mudanças no processo administrativo ambiental

por Talden Farias em 10/Jan/2023
O Decreto 11.373/23 e as mudanças no processo administrativo ambiental

Entre os atos normativos editados no início de 2023, sobretudo decretos alterando ou revogando regras estabelecidas ao longo dos últimos anos, destaca-se o Decreto 11.373/2023, que altera o Decreto 6.514/2008, o qual dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração dessas infrações.

Esse decreto sofreu diversas alterações nos seus quase 14 anos e meio de existência, a ponto de Paulo de Bessa Antunes, em recente artigo publicado na ConJur, apelidá-lo de 'colcha de retalhos', chamando a atenção para a necessidade de reestruturação da responsabilidade administrativa ambiental. Com efeito, a eficiência em termos de arrecadação e de proteção ecológica tem deixado a desejar, ao tempo em que o sistema é também criticado por não observar de maneira adequada as garantias do devido processo legal na esfera administrativa. Isso implica dizer que modificações eram esperadas e desejadas, pois qualquer mudança para aperfeiçoar o mecanismo é extremamente bem-vinda.

O panorama das recentes alterações no Decreto 6.514/2008 envolve a extinção do Núcleo de Conciliação Ambiental, a criação da Câmara Consultiva Ambiental, o redesenho do papel do órgão emissor da multa na definição dos projetos oriundos da conversão do valor da multa em prestação de serviços ambientais, a redefinição da destinação dos valores arrecadados ao Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e o procedimento das alegações finais. São novidades importantes, que alteram de modo significativo o processo administrativo ambiental não apenas no âmbito da União, já que esse decreto federal serve de referência para a maioria dos órgãos ambientais estaduais e municipais, que o utilizam diretamente ou que apenas copiam as regras federais. Destarte, é possível afirmar que a sistematização desse decreto impacta a maioria dos órgãos ambientais, não se restringindo ao Ibama e ao ICMBio, que são os órgãos responsáveis pela aplicação das sanções administrativas ambientais em nível federal.

 

A mais polêmica inovação se deu com a extinção do Núcleo de Conciliação Ambiental, procedimento trazido pelo Decretos 9.760/2019 e alterado pelo Decreto 11.080/2022, que foi regulamentado pela IN Conjunta MMA/Ibama/ICMBio 01/2021. Essa fase do processo administrativo ambiental antecedia ao próprio prazo de apresentação da defesa do autuado, bem como aos atos de instrução processual, nela se analisando a conformidade ou não do auto de infração e se oferecendo ao autuado alternativas legais para o fim do processo e resolução da multa. Cumpre ressalvar que a conciliação não poderia comprometer a recuperação do dano nem as medidas cautelares previstas no Decreto 6.514/2008 e na IN Conjunta MMA/Ibama/ICMBio 01/2021. Na realidade, todos os dispositivos relacionados ao tema foram simplesmente revogados, e a provável justificativa foram as dificuldades e a ausência de melhores resultados do sistema conciliatório.

O posicionamento crítico da base do governo quanto ao assunto não é exatamente uma novidade, haja vista a ADPF 755 ajuizada junto ao STF pelo PT, PSB, PSOL e Rede que pedia declaração de inconstitucionalidade do Decreto 9.760/2019, cujo artigo 95-A dispunha que 'a conciliação deve ser estimulada pela administração pública federal ambiental, de acordo com o rito estabelecido neste Decreto, com vistas a encerrar os processos administrativos federais relativos à apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente'. No entanto, o Novo Código de Processo Civil estabelece que a conciliação é uma forma de resolução de conflitos na esfera administrativa, o que, obviamente, deve incluir a seara ambiental. Como a resolução negociada é uma tendência processual mundial, tanto em âmbito administrativo quanto judicial, a senda mais correta a se trilhar deveria ser o aperfeiçoamento do instituto, e não a sua pura revogação. Além do mais, é preciso garantir ao menos o direito à tentativa de conciliar no que diz respeito aos autos de infração aplicados antes da publicação dessa mudança. Quiçá alternativa seja tratar do assunto na regulamentação que se promete a respeito do artigo 95-B.

Outra novidade foi a criação da Câmara Consultiva Nacional, a qual deverá ser instituída pelo órgão federal emissor da multa ambiental, nos termos dos artigos 148 e 148-A. De natureza colegiada e consultiva, essa câmara subsidiará a estratégia de implementação do Programa de Conversão de Multas Ambientais, como também opinará sobre temas e áreas prioritárias a serem beneficiadas com os serviços decorrentes da conversão e sobre as estratégias de monitoramento. Ela será presidida pelo órgão emissor da multa, contemplando a participação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, de seus órgãos vinculados e da sociedade civil, além de seus próprios representantes, o que procura atender ao princípio da gestão democrática do meio ambiente. Ficou claro que o novel decreto transferiu as atribuições do Núcleo de Conciliação Ambiental, quanto à conversão do valor da multa, para essa câmara, que opinará estrategicamente sobre o assunto, respaldando assim o órgão ambiental competente. Interessante observar ainda a tentativa de fazer a interface da conversão com as diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima.

Sobre o redesenho da atuação do órgão emissor da multa na definição dos projetos oriundos da conversão do valor da multa em prestação de serviços ambientais, cuida-se de uma forma de fazer com que o órgão ambiental possa definir não apenas as diretrizes e critérios para os projetos 'do Procedimento de Conversão de Multa Simples em Serviços de Preservação, Melhoria e Recuperação da Qualidade do Meio Ambiente', mas também acompanhar a execução de tais serviços. Também foi dado ao órgão autuante a tarefa de criar câmaras regionais ou estaduais, grupos de trabalho direcionados a territórios, temas ou projetos específicos, a exemplo de uma câmara regional para tratar do bioma amazônico ou do cerrado. O detalhamento da composição e funcionamento dos órgãos colegiados serão definidos em ato normativo a ser editado pelo órgão responsável, provavelmente por meio de portaria ou instrução normativa, sendo também possível estruturar conjuntamente as câmaras regionais ou estaduais ou os grupos de trabalhos. Isso denota que o papel do órgão ambiental na conversão do valor da multa em prestação de serviços ambientais será mais ativo.

O novo decreto redefiniu o percentual de destinação ao FNMA dos valores arrecadados com o pagamento de multas administrativas ambientais aplicadas pela União, que passou de 20% para 50%, como já tinha sido no passado. Isso demonstra a intenção de prestigiar mais o fundo, que passará a ter mais recursos para gerir e aplicar, o que é positivo. Vale a pena salientar que na mesma data do decreto sob análise foi editado o Decreto nº 11.372/2023, o qual regulamentou a Lei 7.799/1989, criadora do FNMA.

A nova redação do artigo 142 baliza as alegações finais como momento processual apto para se requerer a conversão do valor da multa, ao passo que a do artigo 122 reforça a sua obrigatoriedade para o encerramento da fase de instrução, o que corrobora a relevância do instituto. Já o artigo 2º do novo decreto convalidou as notificações por edital para apresentar alegações finais realizadas até o dia 24 de maio de 2022, quando foi publicado o Decreto 11.080, o que certamente vai criar vários embates judiciais, haja vista discussão sobre a indispensabilidade da notificação pessoal.

De maneira geral, foram mudanças procedimentais que procuraram aperfeiçoar o processo administrativo ambiental. Contudo, há que se equipar os órgãos responsáveis em termos de recursos humanos e materiais, pois a evolução normativa deve ser acompanhada pela correspondente estruturação material. Demais, mais do que alterar aspectos pontuais, faz-se mister discutir e repensar o sistema de responsabilidade administrativa ambiental de modo mais estrutural, uma vez que os resultados não têm sido os esperados, seja em termos de arrecadação ou de proteção ecológica. Para isso, é preciso uma discussão pública com a participação dos segmentos interessados, a fim de promover uma maior efetividade na proteção do meio ambiente sem descuidar das garantias processuais, porque as mudanças impostas pelo Decreto 11.373/2023 não foram substanciais, mesmo porque nem houve tempo para tanto.

Fonte: CONJUR - Consultor Jurídico

Autores: Talden Farias e Tatiana Monteiro

Talden Farias

Advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.

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